Esteve em Portugal para fazer uma apresentação na conferência A Complexidade do Cérebro – que também contou com a participação do artista e neurocientista Greg Dunn –, na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), a propósito da exposição Cérebro: mais Vasto Que o Céu. Durante mais de 20 minutos e para um auditório praticamente cheio, falou da complexidade do cérebro de forma descomplicada.

Através de uma técnica de contagem de neurónios criada por si, tem desmistificado a complexidade do cérebro. Que técnica é esta e por que é que sentiu a necessidade de a criar?

Percebi que já estávamos no século XXI e tínhamos conhecimentos muito detalhados de vários aspectos do cérebro, mas não conhecíamos algumas das coisas mais básicas: de que é que ele é feito? De quantos neurónios? Há cerca de 15 anos interessei-me por esse campo e dei-me conta de que não tínhamos essa informação fundamental.

Portanto, não se tinha pensado numa das questões mais básicas sobre o cérebro?

As pessoas mergulhavam na complexidade e analisavam coisas super detalhadas e intricadas como a montagem e o funcionamento de sinapses. Mas não sabiam o que para mim era um dos factores mais básicos: de que é que o cérebro é feito?

No método tradicional para se contar células, fatia-se o cérebro que depois vai ao microscópio para tirar fotos de pequenas regiões. Por amostragem, vê-se quantas células há e extrapola-se para o cérebro todo. Tudo muito bem, mas isso só funciona se a estrutura do cérebro fosse homogénea e o cérebro está longe de ser uma estrutura homogénea.

Então, se o problema é a heterogeneidade na distribuição das células no cérebro, podemos literalmente dissolver essa heterogeneidade e transformar o cérebro numa sopa de células. Nessa sopa, os núcleos das células ficam soltos num volume e pode-se misturar esse volume como se mistura um sumo. Assim pode contar muito mais facilmente quantas células há em cada pequena amostra desse sumo. Este é o método que criei e que tem um nome pomposo de “fraccionador isotrópico”. Mas eu gosto de chamar pelo que ele é: sopa de cérebro.

E que outras conclusões obteve com a sua técnica?

Uma das coisas mais importantes é que os cérebros não são todos feitos da mesma maneira. Se você tem dois cérebros do mesmo tamanho, eles não são necessariamente feitos do mesmo número de neurónios. Isso também quer dizer que quando você tem num cérebro maior e outro menor, o maior não tem necessariamente mais neurónios. Por exemplo, descobrimos que o cérebro humano tem muito mais neurónios do que o cérebro de outro tipo de mamífero do mesmo tamanho.

Descobrimos ainda que o córtex humano tem três vezes mais neurónios do que o córtex de um elefante, que é o dobro do nosso em tamanho. Mas isso não quer dizer que é porque o cérebro humano é especial. Quando se analisa sistematicamente várias espécies de primatas e de outros tipos de mamíferos, percebemos que o cérebro humano é feito à imagem do cérebro de outros primatas, como Darwin dizia. Em termos de número de células somos apenas um primata com um cérebro grande.

O nosso cérebro é um cérebro de primata que é diferente do de outros mamíferos por causa da maneira diferente como um cérebro de primatas é construído. E não é só o cérebro de primatas que é feito de um jeito diferente: cada tipo de mamíferos tem o cérebro construído de uma maneira diferente. O que é próprio dos primatas é um cérebro que, pelo volume, tem muito mais neurónios do que os dos outros [animais]. Isso é importante porque os neurónios são as unidades de processamento de informação: quanto mais neurónios tem, mais capacidade de processar informação terá. 

Temos muito mais neurónios corticais do que qualquer outra espécie. Esses neurónios recebem uma cópia da informação de todas as informações que o resto do cérebro recebe e têm a capacidade de criar associações novas entre essas informações. Isso quer dizer que o processamento que o córtex faz não é linear. Não é simplesmente: tenho mais um neurónio para processar essa informação e quando ganho mais um neurónio posso processar mais uma informação. Não! Quando você passa de um neurónio para dois, ganha o dobro de número de combinações. E quando passa de mil neurónios para dez mil milhões de neurónios, a quantidade de associações que se podem fazer é uma enormidade

E não é só isso. Num trabalho que acabei de publicar na Journal of Comparative Neurology, mostro que quanto mais neurónios uma espécie de sangue quente tem no córtex, mais tempo ela leva para chegar à adolescência e mais tempo vive depois. Ou seja, quanto mais neurónios o seu córtex tem, mais tempo você vai dispor para assimilar informações.

Então são os neurónios corticais que fazem o nosso cérebro especial?

Se a pergunta é: o que é que a gente tem que mais nos diferencia das outras espécies? A resposta é: com certeza. Mas não quero usar a palavra especial no ser humano. Certamente é mais notável. O nosso cérebro não é extraordinário: é um cérebro ordinário de primata com a distinção de ser o maior cérebro de primata que consegue ter mais neurónios corticais.

Mas a partir de que altura se distinguiu?

De há dois milhões de anos para cá, o tamanho do nosso cérebro triplicou. Um cérebro com três vezes mais neurónios é um cérebro que passa mais tempo na infância e tem mais tempo para aprender. A evolução humana recente é uma história do aumento do número de neurónios no córtex e de como levamos cada vez mais tempo para chegar à vida adulta independente.

Isto tem paralelo com a vida actual. Quando é que um jovem é considerado adulto, se casa e vai cuidar da sua própria vida? Na Idade Média era com 13 ou 14 anos. Em 1800 era com 16 anos. Hoje em dia a gente mora na casa dos pais até aos 20 e poucos e vai começar uma vida adulta independente aos 30 anos. Há gente que acha isso péssimo. Para mim, me parece perfeitamente natural porque é uma consequência do aumento de complexidade. Desta vez, não no número de neurónios no córtex, mas do que vem junto com isso: ter cada vez mais coisas para aprender. Pense em cada coisa que a gente tem de dominar para poder manter um apartamento ou abrir uma conta no banco. Como você tem de lidar com isso tudo, até é natural que leve mais tempo para o seu cérebro se formar e terminar de ser esculpido.

Podemos então já dizer que os neurónios corticais nos dão tempo de vida?

No momento, o que tenho são hipóteses novas e posso dizer que a maneira como a gente costuma pensar sobre longevidade está errada. Costumamos pensar que vive mais quem tem metabolismo mais lento: como acumula danos mais lentamente, consegue estender a vida mais tempo. Agora temos dados para mostrar que o tamanho do corpo é irrelevante e que a taxa metabólica é irrelevante. O que importa é quantos neurónios há no córtex de um animal. Por exemplo, uma catatua tem muito mais neurónios no córtex do que um rato apesar do tamanho do corpo deles ser igual. A catatua vive 30 anos e o rato vive três.

Abre-se aqui uma nova linha de investigação na medicina, por exemplo?

Há várias coisas que agora precisam de ser reconsideradas. Uma é parar de nos focarmos tanto no metabolismo. Sendo isto verdade, quer dizer que a saúde do seu córtex cerebral parece muito mais importante para se manter jovem mental e fisicamente.

Também quer dizer que o maior risco de desenvolver qualquer doença é o tempo vivido e não a idade relativa. Isso quer dizer que quando se usa um rato de um ano e meio de idade – que já é considerado caquéctico, mas em tempo de vida corresponde a uma criança humana – não é razoável esperar que seja um modelo viável de envelhecimento. Você precisa de um modelo de envelhecimento acelerado no rato para conseguir ver danos que se assemelhem aos danos que os [nossos] neurónios acumulam ao longo de 60 anos.

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Suzana Herculano-Houzel é actualmente investigadora na Universidade Vanderbilt Miguel Manso

Essa linha de investigação pode ter um contributo no avanço do estudo de doenças como Alzheimer?

Com certeza. Uma das perguntas comuns é: por que é só a espécie humana tem Alzheimer? A primeira coisa que digo é: não sabemos porque não olhámos para o número suficiente de cérebros. Acho muito provável que outras espécies que vivem muito, como os elefantes, também tenham uma versão de Alzheimer. Agora já vimos que há vários chimpanzés com sinais de Alzheimer. Com base nos novos resultados sobre longevidade, sugiro que não são só os humanos a ter essas doenças associadas à idade. Mas a espécie humana é uma das pouquíssimas espécies que tem neurónios suficientes no córtex para ter a sorte de viver tanto que até consegue chegar a esse extremo de começar a mostrar sinais de doenças que outras espécies – que morrem com cinco anos – nunca vão chegar a ter. 

Gostaria de contar neurónios de alguma espécie nos próximos tempos?

No topo da minha lista está o ratel, um carnívoro africano. É preto, tem unhas compridíssimas, uma lista branca nas costas e não tem uma cabeça muito grande. É o diabo encarnado e foge de qualquer lugar.

Por que é que o quer estudar?

Há pouco tempo estudei o guaxinim, a versão urbana do ratel. Nos Estados Unidos, o guaxinim tem a fama de ser a praga que entra na casa das pessoas, rouba comida e arromba as janelas. Descobrimos que o guaxinim tem muito mais neurónios do que se esperaria num cérebro daquele tamanho. O guaxinim tem um cérebro do tamanho de um gato, mas um número de neurónios de um córtex de um cachorro grande. O ser humano não é nenhuma excepção, o guaxinim é uma excepção. Pergunto-me se o ratel não é uma excepção ao cubo.

Sobre cães e gatos, na contagem de neurónios o cão ganhou ao gato?

O cão tem o dobro de neurónios do gato. Pelo tamanho do cérebro, tanto cães como gatos têm o número de neurónios que se esperaria. O cérebro do gato é sempre menor do que o cérebro do cachorro, mesmo de um cachorro pequeno. Há uma razão muito simples para isso. O gato foi domesticado a partir de uma espécie de felino bastante pequena. Já o cão foi domesticado do lobo. Mesmo que se tenha diminuído o tamanho do corpo dos cachorros durante a selecção artificial, o cérebro continua a ser grande porque no início já era grande.

Temos falado da contagem de neurónios, mas a certa altura na sua investigação diz que nos diferenciámos devido à cozinha. Como é que isto aconteceu?

Por que é que nenhum outro primata tem o cérebro do tamanho que a gente tem? Como não modifica a comida que come, não cabe no seu orçamento energético. Se comessemos sem fazer essa modificação como os outros primatas, teríamos de estar a comer nove horas e meia por dia.

Acontece que há três milhões de anos uma espécie de primata já andava de pé, tinha proporções humanas e uma mão como a que temos hoje. Isto foi muito importante porque quando se anda com duas pernas em vez de quatro, gasta-se metade da energia. Se de repente anda a mesma distância com metade da energia, quer dizer que pode andar o dobro e alcançar comida numa área muito maior.

Além disso, tinha as mãos mais ágeis e é mais fácil de manipular coisas. Foi assim que há três milhões de anos apareceram as primeiras ferramentas de pedra, que são objectos claramente feitos com uma finalidade: cozinhar. Com esses objectos, pode-se cortar raízes, carne ou pele. Toda esta forma prévia de processamento da comida vai facilitar o processo de digestão e diminuir o tempo de mastigação.  

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Suzana Herculano-Houzel esteve em Portugal numa conferência sobre a complexidade do cérebro na Fundação Calouste Gulbenkian Miguel Manso

Portanto, isto está na linha de pensamento da investigação do primatólogo Richard Wrangham, que diz que o controlo do fogo “revolucionou” a forma como digerimos os alimentos.

Exactamente. O Richard foca-se no fogo como grande transformação do alimento. Acho que agora temos dados sólidos do uso habitual do fogo entre há um milhão e um milhão e meio de anos. Mas a curva do aumento do tamanho do cérebro começa antes disso há dois milhões de anos. É possível que seja já por causa do uso do fogo, mas ainda não encontrámos essa evidência. Também é perfeitamente plausível que, antes do homem dominar o fogo, o domínio das ferramentas tivesse aumentado enormemente a quantidade de calorias que se conseguia ingerir.

E entra na equação qualquer tipo de comida?

É para qualquer tipo de comida. Claro que a carne ajuda porque tem muito mais calorias por grama do que uma raiz. Mas só a mudança para a carne não seria suficiente. Se receber um bife de 200 gramas e se só tiver os seus dedos e o bife, vai levar uma hora e meia para o comer. Cozinhe-o primeiro e come-o em dez minutos.

Mas imaginemos que um outro primata durante a evolução também tinha começado a cozinhar. Podia ter um cérebro de humano?

Em princípio, sim. Mas não basta ter energia suficiente. Você pode dar comida cozida para primatas no zoológico e pode dar comida cozinhada para o seu cachorro. Mas a primeira coisa que você vai conseguir é um animal gordo.

Mas, tal como tem falado nas suas conferências, hoje temos graves problemas com a alimentação, como a obesidade.

Resolvemos o problema de não termos calorias suficientes e agora temos o outro extremo. Para mim, a fonte do problema é que temos um cérebro que tem a mesma avidez por comida. E não só inventámos a cozinha, como também inventámos a agricultura, os supermercados, o frigorífico e o armário da cozinha com os alimentos industrializados. O problema dos alimentos industrializados é que, no geral, não têm água e são riquíssimos em açúcar e gordura. Por grama tem muito mais calorias do que a comida que se prepara sozinho. Com todas essas invenções e tecnologia, ficou extraordinariamente fácil o acesso a calorias.

Também tem desmistificado certos mitos sobre o cérebro. Por exemplo, o mito em que só utilizaríamos 10% do cérebro. Por que é que estes mitos são perigosos?

O perigo é achar que está seguro e não precisa de usar cinto de segurança nem capacete porque só usa 10% do seu cérebro. Se se magoar, 90% ainda está óptimo. Você usa o seu cérebro todo o tempo todo, mas de maneiras diferentes. Há ainda o problema dos charlatões que dizem que te vão ensinar a usar os outros 90% do seu cérebro. Acho que o problema mais fundamental é mesmo o problema da falta de informação.

Saiu da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) e foi para a Universidade Vanderbilt (Estados Unidos), por que é que tomou essa decisão?

Não tinha mais condições para trabalhar no Brasil. Nas últimas décadas, o Brasil se transformou numa sociedade que não se importa com o conhecimento. Em 2016 saí do Brasil porque recebi uma proposta de trabalho irrecusável para trabalhar num lugar onde a ciência e os cientistas são valorizados.

Qual é então a maior dificuldade de estudar cérebros?

Em muitos lugares, a dificuldade continua a ser ter apoio do governo para a investigação. Esse tipo de investimento tem de ser público, sem cordas amarradas e interesses financeiros. Tem de vir da sociedade como um todo. Acho que a maneira mais fundamental de isso acontecer é educar o público e despertar o seu interesse pelo conhecimento.